A VP executiva da Comissão Europeia, Margrethe Vestager, foi eleita para o Hall da Fama da SXSW 2024 como reconhecimento pelo seu trabalho nas indústrias digitais. A executiva, que comanda a estratégia de inteligência artificial (IA) na União Europeia (UE), tratou da tecnologia no contexto de liderança, geopolítica e futuro. Com intermediação do editor-chefe do Texas Tribune, Sewell Chan, ela falou sobre o engajamento governamental e cívico para a IA.
No que diz respeito à série de atos legislativos relativos ao mercado digital e tecnológico, ela explica que o pensamento adotado pela UE é simples:
“A tecnologia está aqui para servir as pessoas e, se você confia nela, é muito mais provável que você a adote e a aproveite ao máximo”, disse Margrethe, no contexto de avaliar os atos legislativos relativos ao mercado digital e como eles impactam os consumidores. “Sendo assim, as leis buscam, cada uma à sua maneira, tornar o ambiente digital mais seguro e confiável para que, então, possa ser melhor explorado”, disse a dinamarquesa.
Legislações
Lei de Serviços Digitais
A Lei de Serviços digitais, por exemplo, é, para Margrethe, uma forma de descobrir, em nível europeu, se o serviço digital carrega algo ilegal. Isso significa dizer que há uma exigência por um sistema que identifique se as plataformas transportam algo ilegal e retire esse conteúdo do ar, caso detectem. Dessa forma, a legislação expressa a preocupação com riscos potenciais nas plataformas que, geralmente, não são levados em consideração, como a saúde mental.
Há, em contrapartida, a possibilidade de contestar, em tribunal, a aplicação da lei para aqueles que a julgarem indevida. Na visão da VP da Comissão Europeia, ao considerar esses dois lados da legislação, pode-se concluir que “ a lei é para proteger e, ao mesmo tempo, garantir a liberdade de expressão”.
Lei dos Mercados Digitais
Assim como a Lei de Serviços Digitais, Margrethe citou a Lei dos Mercados Digitais, e a classificou como “simples”. “A Lei dos Mercados Digitais é muito simples. Vamos abrir o mercado digital para que muitos mais inovadores possam chegar lá”. Isso porque, segundo ela, a legislação visa tornar o setor mais justo e democrático com obrigações e proibições direcionadas às Big Techs.
De acordo com reportagem do Valor Econômico, as grandes plataformas digitais que prestam serviços essenciais terão, entre outras obrigações, de disponibilizar as ferramentas e informações necessárias para uma verificação independente aos anunciantes que utilizam sua plataforma. Também é dever dos chamados “gatekeepers”, permitir que os usuários empresariais tenham acesso aos dados que geram em suas plataformas.
Por outro lado, essas organizações estão proibidas de favorecer os seus produtos em classificação na plataforma em relação a similares de terceiros. Impedir que os usuários desinstalem aplicativos ou softwares pré-instalados também é uma atividade não permitida na nova legislação.
Lei de IA na visão da VP da Comissão Europeia
Margrethe avaliou que a legislação para inteligência artificial é uma maneira de assegurar que não haja riscos de discriminação. Durante a fala, a política evidenciou o papel da tecnologia baseada em dados e critérios técnicos como medida de combate a decisões tendenciosas praticadas por humanos. Para ela, esse caráter imparcial, aliado à incorporação da tecnologia em organizações, garante a honestidade em processos que têm impacto significativo na vida das pessoas, como na admissão na faculdade, obtenção de um seguro ou hipoteca.
Apocalipse da informação
O editor-chefe do Texas Tribune, Chan, questionou se a escalada das deep fakes pode ser um indício de que a sociedade caminha para um “apocalipse da informação” e, Margrethe recorreu à questão da confiança para respondê-lo. Em linhas gerais, ela disse acreditar que, apesar da mentira sempre ter acompanhado a humanidade, o “apocalipse da informação” é o momento em que se deixa de confiar em qualquer coisa e passa a se duvidar de tudo.
“A sociedade é uma questão de confiança, que eu confio em você para ter boas intenções. Sabemos que, eventualmente, há, de fato, alguém que mentiria para nós. Mas, em geral, você pode realmente acreditar que a sociedade está lá para te ajudar. Sendo isso prejudicado, o que resta é o caos”, afirmou.
Margrethe expôs dois caminhos contra as deep fakes: a resposta tecnológica e a resposta jornalística. A primeira diz respeito às ferramentas tecnológicas que podem se certificar que um conteúdo é falso ou produzido. Já a segunda refere-se aos esforços jornalísticos que a classe emprega para combater esse problema. As medidas vão desde a verificação dos fatos até os recursos investidos pelas organizações para que haja um esclarecimento acerca do material.
Consumo de energia também preocupa
Com o avanço da IA e da computação em nuvem, o consumo de energia no setor de tecnologia vem preocupando à medida que os grandes parques de servidores e de armazenamento se tornam cada vez mais necessários. Nesse caso, Margrethe acredita que deva haver um desenvolvimento tecnológico capaz de gerar semicondutores mais avançados e que consumam menos energia.
“Precisamos desafiar a indústria tecnológica a ser mais avançada e eficiente. Um dos caminhos a se seguir é ter a IA descentralizada para que você tenha uma versão com você, em seu smartphone, por exemplo, que funcionará em um ambiente descentralizado”, apontou a executiva.
Regular é preciso, defende VP da Comissão Europeia
Um dos aspectos da abordagem de Margrethe, que também é responsável pela direção estratégica de uma Europa preparada para a era digital, foi o crescimento colaborativo. Quando questionada se aprendemos com as lições do que foi feito, ela lembrou que nos anos 1990 – quando a web era uma inovação digital – o seu uso não foi necessariamente aprendido rápido, mas foi aprendido junto pela sociedade.
Esse exemplo mostra, segundo ela, que há um interesse comum entre diversos países acerca da inteligência artificial, já que a tecnologia está cada vez mais presente na sociedade. E para construir uma regulação que funcione de maneira mais eficiente, é necessário propor uma “legislação moderna” que dê espaço ao diálogo entre o regulador e a empresa em questão. “Ao invés de pensarmos que sabemos tudo, que já vimos de tudo, o que obviamente não vimos, devemos dizer: ‘É isso que queremos alcançar”, defendeu.
A VP da Comissão Europeia também comentou sobre como a regulação deve acontecer para que as novas tecnologias não estejam sempre à frente da lei e, por consequência, demandem novas leis para atendê-las. “Tentamos regular o uso da tecnologia, em vez do que realmente é o estado da tecnologia. Se não, certamente chegaremos sempre tarde demais. Sendo assim, a Lei de IA centra-se na utilização da tecnologia e não nesta geração de grandes modelos de linguagem ou nesta trajetória em direção à inteligência artificial”, acrescentou.
Seguindo a linha de raciocínio, Margrethe ressaltou que, assim como existem legislações para o meio ambiente e para o mercado de trabalho, é necessário legislar sobre as tecnologias. Em resposta ao temor dos dados pessoais serem violados, ela elevou a importância das democracias. “Precisamos que as democracias respondam a todas as ameaças que surjam, a fim de se beneficiarem de todas as promessas da tecnologia. Precisamos deste tipo de legislação que estamos aprovando agora [na Europa]. E, dentro desse quadro, com a aplicação da lei de concorrência, podemos fazer nosso trabalho para manter o mercado aberto. É basicamente isso que é necessário para tirar o máximo da tecnologia, que haja um impulso competitivo para fazer o melhor que pudermos”, finalizou.