Para o PhD em Ciência da Computação e Cientista-chefe da TDS Company, professor Silvio Meira, estamos passando por vários processos que nos levam ao próximo nível, sendo que dois fenômenos tecnológicos, surgidos em 2006, são habilitadores de boa parte disso: a nuvem e o smartphone.
Nesta conversa, o especialista fundamenta essas e outras tecnologias, como a blockchain e o 5G, esclarecendo que “elas não fazem parte do próximo nível, mas são suas habilitadoras”. Exemplo? O próprio smartphone que, segundo Meira, veremos, no futuro, como um fax.
“Não precisaremos de uma unidade computacional de 256 GB na mão se tivermos uma conectividade devidamente distribuída, com serviços adequados e som e imagem, por exemplo. Estou falando de “alexas” distribuídas em todos os cantos e capazes de nos atender por um serviço de assinatura”, ressaltou.
Em contrapartida, tecnologias como o edge computing – cujo nome talvez não faça jus à sua capacidade de transformação, segundo o cientista da computação – tendem a ampliar relevância conforme a demanda por análise de dados em tempo real seja ampliada com a internet das coisas (IoT). Acompanhe os principais trechos da entrevista:
Você entende que a digitalização está habilitando próximos níveis em todos os setores de negócios?
Silvio Meira – Não. Na verdade, estamos há muito tempo digitalizando o nível anterior. Ou seja, coisas que já aconteciam passaram a ter uma “capa digital”, que na maioria dos casos cria mais velocidade, mas não simplifica nada, não nos dá mais agilidade. E, certas horas, informatiza o caos. Como exemplo, comparo o passaporte analógico ao que agora é obtido por meios digitais. Agora, nós agendamos pela internet, pagamos pela internet, mas temos de ir pessoalmente na Receita Federal finalizar o processo. No fundo, é a mesma coisa que fazemos há décadas. Não habilitamos o próximo nível. Estaríamos habilitando o próximo nível se tivéssemos uma identidade figital, interoperável (capaz de ser lida, sob demanda, em qualquer lugar), para, literalmente, abrir fronteiras, validando identidade, estabelecendo limites de acesso…
Por outro lado, há avanços interessantes, como blockchain, que pode ser usada para criar uma moeda distribuída e emitida por conjuntos individuais, em um processo de criação de valor por uma comunidade que não depende de terceiros ou de meios analógicos, como um governo, um banco central. Blockchain garante a segurança e confiabilidade das operações, modifica a estrutura que foi criada e funciona desde quando conchas eram usadas como meios de pagamento. Estamos falando de algoritmos criando um conjunto de agentes em rede interagindo com um protocolo comum, combinando os meios de troca e moeda que estão criando.
Mas o próximo nível também vem sendo habilitado em coisas básicas, como compras online. O que eu destaco é que nem tudo o que é digital nos leva ao próximo nível. É preciso separar o que é esse “próximo nível”.
E o que é o próximo nível?
Silvio Meira – O próximo nível nunca é a tecnologia, mas sim o que ela habilita. Pense numa época antes da escrita: tudo era oral, o que tem seu imenso valor nas relações humanas e comunitárias. Mas a escrita habilitou um próximo nível, possibilitando o registro das relações entre as pessoas e as instituições. Pense em outra época, antes da prensa de tipos móveis: até Gutenberg, cada livro era laboriosamente copiado à mão, com o copista quase sempre interferindo, às vezes por sua vontade, no conteúdo. A impressão em escala começou a criar um próximo nível, no século XV, e mudou o mundo de uma vez por todas. Esses foram próximos níveis para as suas épocas, assim como o surgimento dos bancos, um sistema que tem milhares de anos de história, baseado nas mesmas tecnologias, como o livro caixa, hoje digitalizado. Mas isso pode mudar radicalmente.
Como?
Silvio Meira – Os Bancos nos dão um registro de quanto dinheiro temos lá. Mas quando fazemos um depósito numa instituição bancária, o saldo que vemos nos diz quanto o Banco nos deve e não quanto efetivamente temos.
É exatamente por isso que os Bancos deveriam cumprir uma função social importante, que seria usar o dinheiro que nos devem para emprestar a quem precisa e fomentar o desenvolvimento social em escala.
Na prática isso não acontece, pois essas instituições – por limitações de risco, entre outras – quase sempre só emprestam para quem não precisa. Isso faz com que muita gente limite o uso do Banco apenas para registrar quanto dinheiro têm. Mas, se for só para isso, elas não precisam desse sistema. Hoje, há inúmeros registros literalmente digitais e mais fiéis, que dizem de fato quanto temos, e não quanto o banco está nos devendo. A primeira mudança que isso pode causar é uma fragmentação [de oligopólios], que pode redesenhar muitas das coisas que a gente faz atualmente, e desintermediar negócios.
Pode dar exemplos?
Silvio Meira – Seguros de automóveis. Estamos a ver, no Brasil, seguros por demanda ou uso, onde se paga pelo risco que você corre, em tempo real. Se o carro está na garagem de um condomínio fechado, desligado, ele não tem de ser tarifado pelo risco de uma colisão. Ali não há esse risco, pelo menos não causado por aquele automóvel. O risco ali é um desabamento do prédio, enchente ou causas naturais, que são raras e, portanto, menos caras. Esse modelo de seguro é a típica dinâmica da desintegração figital que está acontecendo, e vai ser acelerada, em vários ambientes, inclusive na própria indústria automotiva.
Hoje, já há iniciativas de compartilhamento de automóveis (car sharing), que devem avançar de forma muito simples quando o veículo não precisar mais de um motorista (ou seja, quando a condução autônoma se tornar uma realidade). Talvez até as montadoras deixem de vender e passem a oferecer carros como serviço. Este é um dos próximos níveis em curso e, repare, está sendo habilitado por algoritmos, mas exige investimento e financiamento no longo prazo, em veículos.
Aqui volta o sistema financeiro…
Silvio Meira – Não há como fazer nada no planeta sem envolver o sistema financeiro. E nunca houve. A ideia de sociedades baseadas em escambo, em grande escala, como alguns acreditam que aconteceu nos primórdios, não tem comprovação histórica. Sempre tivemos intermediários. Agora, há um ambiente de mudanças muito radicais e a mais dramática para o setor financeiro pode ser quando o governo tiver mais – em escala – o monopólio de imprimir moeda. Isso mexe com muitas estruturas, inclusive com a noção de estado nacional. Afinal, os processos de decisão dos governos são baseados em moedas e as discussões orçamentárias são algumas das mais importantes da agenda. A possibilidade de habilitar digitalmente grandes grupos de pessoas a participarem de economias geridas por elas próprias – em função da sua energia pessoal para produzir algo – pode mudar tudo isso.
Isso envolve maior democratização dos dados? Você acredita nessa tese?
Silvio Meira – Acredito em parte. Antes da democratização, é preciso haver alfabetização digital, e para dados. A maioria das pessoas não sabe sequer configurar o smartphone para permitir ou não o compartilhamento dos seus dados. Portanto, pouco adianta falar em democratizar se não houver uma educação para que as pessoas saibam como controlar o uso dos seus dados por terceiros. É o mesmo que democratizar governos, se a vasta maioria das pessoas não sabe em quem e para que está votando. Enfim, democratizar dados sem educação digital produzirá exatamente o mesmo resultado que as escolhas políticas que fazemos.
Como tecnologias mais maduras, como a satelital, apoiam na habilitação de próximos níveis?
Silvio Meira – O satélite não é tão maduro assim. É uma tecnologia do fim da Segunda Guerra Mundial e avalio que está amadurecendo agora. Há tecnologias muito mais antigas, como ler e escrever, que são fundamentais para o próximo nível. Depois de aprender a ler e a escrever, a pessoa precisa saber interpretar o que leu. E se ela souber, resolve boa parte das escolhas políticas que comentei anteriormente. O mesmo vale para os satélites. Não só a evolução tecnológica tem de ser avaliada, mas, repito, a tecnologia não pode ser confundida com o nível que ela habilita. Para fazer uso de satélites é preciso ter políticas públicas de acesso universal para escolas, saúde etc.
Os satélites são parte fundamental da integração digital em zonas remotas, como as rurais. Precisamos desenvolver políticas de uso de satélites para agricultura de precisão, por exemplo. Estou falando de políticas combinadas a tecnologias, que habilitam o próximo nível de verdade, que tem de ser para muitos, pra todos, e não só para alguns. Por isso que esse “habilitar” deve ser universal. Não adianta habilitar só fazendeiros que entendem e têm recursos para usar o satélite. Não queremos que o próximo nível aumente a lacuna entre quem tem recursos e quem não tem. O próximo nível tem de aumentar muito a diversidade, e isso também se faz com equalização de performances.
Pode comentar mais sobre esses efeitos colaterais?
Silvio Meira – Nós precisamos incorporar a ideia de que não se deixa ninguém para trás. Henry Ford, há mais de 100 anos, já ensinava que se magnifica o potencial de uma tecnologia quando quem ajudou a construí-la tem condições de usá-la. Sem tal nível de inclusão, o que poderia ser um habilitador de próximo nível vai, na verdade, habilitar efeitos negativos como violência e caos urbano.
Continuando na indústria automobilística, a quantidade de carros blindados no Brasil é um exemplo claro dessa disparidade. Nós temos a maior frota de carros blindados do mundo (220 mil, em dados de 2018, segundo a Associação Brasileira de Blindagem). O segundo colocado, à época, era o México, com 50 mil blindados, ou seja, menos de um quarto do Brasil. Esse é o tamanho da nossa crise e isso deveria nos levar a procurar tecnologias que habilitam o próximo nível “desblindando” carros, pois representaria uma menor desigualdade e, consequentemente, menos violência.
Quais tecnologias habilitadoras de próximos níveis você destaca atualmente?
Silvio Meira – O streaming. Na parte de áudio, não é como um disco. Você às vezes comprava um disco de um artista só por causa de uma música. Agora, você paga um valor fixo por uma biblioteca imensa e escolhe o que quer ouvir. Isso mexe na arquitetura da sociedade, de fato. Veja o cinema: quantos relacionamentos do passado não começaram no escurinho de um cinema? Hoje isso não acontece mais na mesma escala e a pandemia só acelerou o que já vinha se estabelecendo, com o avanço das redes sociais para estabelecer relacionamentos. Aliás, durante a pandemia, houve um surto de Tinder, o que demonstra que as pessoas estão mudando o modo como se relacionam. Isso não aconteceu da noite para o dia. Basta lembrarmos que as social networks começaram na década de 1990.
Ou seja, depois de trinta anos, começamos a ver um monte de namoro e casamento que tiveram início nas redes sociais. Isso é um próximo nível.
Como o ambiente público está posicionado na habilitação dos próximos níveis?
Silvio Meira – Vamos segmentar por níveis e lugares. O estado brasileiro tem comportamento indigente quando se trata de políticas públicas para o digital. Não há, do ponto de vista funcional, no país, estratégias para governo digital, educação digital, segurança e sociedade digitais. Isso não significa que estados e cidades não as tenham. Alguns têm e são funcionais. Mas são coisas localizadas que, se fossem amplas, nacionais, poderiam mudar o cenário. Se tivéssemos um programa nacional para formar jovens programadores em escolas técnicas, por exemplo, seria possível termos bons programadores em larga escala, fazendo a mágica de incluir na cadeia de valor de tecnologias digitais pelo menos parte de 80% dos alunos que saem do Ensino Médio e não vão fazer universidade. Afinal, apesar de todo o desemprego que temos [cerca de 14 milhões de desempregados no fechamento desta entrevista], há 250 mil vagas abertas e não preenchidas para trabalho em negócios digitais no país. E mais: três, de cada quatro dessas vagas, poderiam ser ocupadas por alunos egressos do Ensino Médio.
Você falou em políticas digitais que funcionam em estados e cidades. Pode dar exemplo?
Silvio Meira – Recife é um exemplo. Aqui, há cinco escolas que já formam programadores no Ensino Médio e eles são formados para trabalhar no Porto Digital [projeto idealizado e fundado pelo entrevistado]. O resultado é que saímos de duas empresas e 50 empregos em 2000, para, em 2020, 350 empresas e 13.500 pessoas, que geram faturamento de mais de R$ 2,85 bilhões anuais, representando 5,4% do PIB do Recife. O Porto Digital é o exemplo claro de que a transformação digital precisa envolver pessoas. O Brasil, como não olha para as pessoas, está, como Estado, à deriva do ponto de vista digital há mais de 50 anos, salvo as exceções, como a cidade de Recife.
Na série de vídeos “Vamos habilitar o próximo nível”, da Embratel, você fala da revolução que os smartphones e a nuvem fizeram a partir de 2006. Hoje, como estão sendo as habilitações de internet das coisas, inteligência artificial, ciência de dados etc. no ambiente de múltiplas nuvens?
O que a nuvem fez foi eliminar a necessidade de investimentos em bens de capital (Capex) para criar novos negócios. Isso levou a uma eclosão de startups e inovação no mundo inteiro. Avalio que, se essas ideias fossem criadas dentro de empresas já estabelecidas, com necessidade de reuniões, aprovações, executivos de negócios legados defendendo suas áreas, restrição de investimentos etc., muitas delas não teriam vingado, dadas as amarras naturais do setor corporativo. Já os smartphones apareceram na mesma época e isso possibilitou às startups criarem coisas digitais para atender essas pessoas diretamente, sem precisar da intermediação de grandes empresas. Noutra dimensão do espaço-tempo digital, até países como o Brasil – e digo isso pelo barco sem rumo que nos tornamos, como comentei anteriormente – produziram episódios interessantes dessa série que começa com a internet comercial em 1995. O modelo de governança da internet comercial no Brasil é um exemplo e servimos de benchmark para o mundo nisso. Por outro lado, estamos falando da chegada do 5G agora [mais de dois anos depois de outros países], demonstrando que nosso barco, além de estar à deriva, está sem capitão, e isso traz consequências práticas, como não sabermos que rumo terá o 5G no Brasil.
Há indicativos dos rumos do 5G em outros lugares?
Silvio Meira – Mundialmente, já é possível ver desintermediações muito interessantes causadas pelo 5G e, no futuro próximo, isso pode mudar relações da sociedade. Uma fábrica de geladeiras pode tomar a decisão de que não vai mais vender o eletrodoméstico, mas sim entregar o serviço de resfriamento para o cliente, por exemplo. Mas isso depende do 5G universalizado. Hoje, se alguém lançar um serviço como esse, terá um monte de problemas, pois não há todos os insumos necessários para acompanhar com eficácia o uso diário da geladeira. Com o avanço da cadeia do 5G, a geladeira vai sendo instrumentada a ponto de avisar que está posicionada perto demais da parede, o que pode comprometer o seu compressor. Mais ainda, ela pode se recusar a funcionar – e dizer por qual motivo isso está ocorrendo – caso esteja em uma condição ruim de operação. Isso vai mexer com o varejo, pois, hoje, o usuário compra a geladeira de uma loja na ponta da cadeia. No futuro, pode ser que a fábrica venda, como assinatura, o serviço proporcionado pelo produto direto para o consumidor. É uma desintermediação, e das não triviais.
A desintermediação parece ser um driver dos próximos níveis. Inclusive, esta nossa conversa, para o Hub de Brand Publishing da Embratel, é fruto de uma desintermediação da mídia…
Silvio Meira – Pois é… eu credito um dos inícios da desintermediação da mídia à Red Bull, que se inventou como mídia proprietária e depois seguiu fazendo a mesma coisa em vários setores. Foi muito interessante uma marca de bebida que, ao invés de patrocinar um time de futebol, foi lá e “criou” os próprios times. Depois fez o mesmo na Fórmula 1.
Acredito que, assim como na mídia, teremos muitas desintermediações pela frente, e algumas vão acontecer antes do que a gente imagina.
Vou dar outro exemplo, além da mídia e da geladeira: as chaves. Acho que chaves e fechaduras – que foram uma revolução que conseguiu habilitar o próximo nível há cerca de mil anos, à medida que permitiu que as pessoas começassem a trancar casas e coisas – deixarão de existir. Não faz sentido manter um artefato tão rudimentar, como as chaves, inclusive pelas suas limitadas possibilidades de combinações, quando já dominamos tecnologias de reconhecimento facial e digital. Seria muito melhor um serviço de assinatura, funcionando 24 horas por dia, pois a disponibilidade precisa ser garantida, habilitando a minha entrada – e a de terceiros – de forma limitada em casa, no condomínio, no aeroporto etc.
Esses avanços precisam de infraestrutura, de disponibilidade…
Silvio Meira – Definitivamente. É por isso que precisamos de políticas públicas. Sem elas, como estamos hoje no Brasil, não funciona. Só para ilustrar: como o sujeito poderia ser reconhecido facial ou digitalmente, ou a geladeira poderia ser high tech, nos locais onde não há cobertura 5G?
Então, o acesso universal a 5G é essencial para esses avanços, habilitando o próximo nível por meio de um conjunto de dinâmicas associadas.
Pode dar mais detalhes sobre o papel do 5G como habilitador de próximo nível?
Silvio Meira – Sumarizando, o grande impacto potencial do 5G é o de ser o habilitador de até 1 milhão de conexões de coisas por quilômetro quadrado. O uso de 5g vai nos dar o potencial – se é que existe – de universalizar a internet das coisas. A minha hipótese é de que há potencial. E não sou só eu que acredito: no mundo, estima-se um impacto anual de R$ 13,5 trilhões de dólares com a internet das coisas, por ano, ali em 2035. Isso equivale ao PIB de uma potência como a China (14,7 trilhões em 2020), e deve mudar dramaticamente o mercado, com principal impacto na indústria. E não digo na indústria internamente, mas, sim, no que ela cria como ecossistema para a sociedade, gerando uma revolução no que hoje nós chamamos de fog e edge computing.
Então o edge computing é outro habilitador do próximo nível?
Silvio Meira – Primeiro, deixe-me confidenciar que não sei se esse nome (edge computing) perdura. Mas isso não importa. O que importa é que vamos conectar tanta coisa em todo e qualquer canto e, por variadas razões, elas estarão interconectadas, o que trará a necessidade de resiliência sistêmica. Por isso, vamos transferir capacidade computacional cada vez mais para a borda da internet. Isso é muito melhor do que transferir capacidade computacional para dentro das coisas, pois, uma das funcionalidades que queremos é de que as coisas conectadas fiquem lá sem demandar manutenção ou causar problemas de segurança, por exemplo. E, se tivermos muitos sensores e atuadores nas coisas, o efeito certamente será o contrário. Além disso, a computação na borda tira o peso dos data centers e boa parte do tráfego das redes.
Os avanços para o próximo nível também mexem com as relações de trabalho?
Silvio Meira – Há uma miríade de coisas acontecendo em muitos setores, pois há novas arquiteturas de criação, entrega e captura de valor, em rede/ecossistemas que estão mudando a noção do que é uma empresa. Até pouco tempo, a empresa era uma organização responsável por capturar, organizar e entregar o resultado do trabalho. Em outras palavras, era um ponto de aglomeração de pessoas pagas para entregar um trabalho. O conjunto de mecanismos para fazer isso já vinha sendo atacado pelos mercados digitais globalmente, afetando as performances, suas articulações e entregas. Com isso, os mercados de trabalho começaram a se redesenhar como redes de performances, cada vez mais mediadas por plataformas digitais. O trabalho procura as pessoas usando algoritmos, que articulam e mediam os processos que os grupos usam para realizar certo tipo de esforço.
Isso não estimula o desemprego e, consequentemente, gera problemas sociais?
Silvio Meira – Não e sim. Desde sempre, os trabalhos que estão sendo deslocados/destruídos são aqueles que não deveriam ser realizados por seres humanos no próximo nível. Hoje, esses trabalhos são todos aqueles em que ações repetitivas podem ser representadas por padrões, registrados em big data, tratados por inteligência artificial e, então, transformados em softwares e robôs. Até agora isso alcançou o trabalho repetitivo que não exige contato humano. O trabalho de fisioterapeuta, de dentista, de massagista, entre outros, não está sendo substituído, e talvez nunca seja. Já no chão de fábrica, na montagem de um automóvel, por exemplo, a robotização já está no próximo nível. Nos escritórios de advocacia, o próximo nível está logo ali na esquina do tempo.
Para evitar o desemprego e seus impactos sociais, é preciso, novamente, políticas públicas, para fazer a ponte entre as competências e habilidades do trabalho velho e as novas demandas, do trabalho novo, à medida que os primeiros vão desaparecendo.
Ou seja, o trabalho novo não precisa e quase nunca incorpora as competências do trabalho velho.
Em 1903, no início da indústria automotiva nos EUA, foram vendidos 11 mil automóveis. Dez anos depois, já eram 3,6 milhões. São 300 e tantas vezes mais. Alguém pode se perguntar o que ocorreu com toda a indústria de tração animal, que não eram só os cavalos, mas também da alimentação deles, das ferraduras, das carroças, dos cocheiros… Em 1923 havia proporcionalmente muito mais gente empregada do que em 1903 (na indústria, 20,3% vs. 26,9% dos trabalhadores). Mas estavam em fábricas de motores, chassis, freios, etc. Eram pessoas que estavam num próximo nível de competências, e esse problema está aqui, agora, representado pela demanda de transformar o que sabemos e fazemos no mundo e no trabalho analógico em competências e habilidades para competir no espaço figital.