O Brasil consegue formar 53 mil pessoas em ensino superior de perfil tecnológico ao ano atualmente. Mas as empresas irão requerer 159 mil profissionais/ano entre 2021 e 2025. Sim: a conta não fecha, e estamos com um déficit de pelo menos 106 mil formações anuais.
No ano passado, tínhamos mais de 1,25 milhão de empregos em softwares, serviços de TI e TI in house (que são empresas com grandes departamentos de tecnologia, como bancos). E esses empregos movimentaram uma massa salarial superior a R$ 7 bilhões de reais. Até 2025, a projeção é que tenhamos quase 2 milhões de empregos nessas áreas, o que presume a necessidade de formar e ocupar quase 800 mil novos profissionais. É o que explicam Sergio Paulo Gallindo, presidente executivo da Brasscom, e Mariana Rolim, diretora executiva e DPO da entidade.
Nesta entrevista, eles detalham esse cenário de déficit de talentos em Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC) e pontuam formas de combater o hiato, o que demanda inclusão e diversidade social.
O que explica esse déficit de talentos de tecnologia no Brasil?
Sergio Paulo Gallindo – Os nossos associados já mapeiam a escassez de talentos há algum tempo. A partir de 2018 o quadro se complicou, com as empresas começando a dizer que só não contratavam mais porque não tinham talentos. Com a pandemia a situação ficou ainda mais complexa, pois tivemos de experimentar uma aceleração atípica na demanda por esses profissionais.
Primeiro houve a grande movimentação para o teletrabalho, o que, de certa forma, ampliou geograficamente os horizontes da empregabilidade, pois as empresas puderam contratar talentos de qualquer lugar do Brasil ou do mundo. Mas isso não supriu a digitalização, pois as pessoas em casa começaram a fazer muitas coisas, principalmente por comércio eletrônico, incluindo o crescimento vertiginoso de comida à distância e ampliando a demanda por profissionais para habilitar essas soluções. Com a aceleração digital, portanto, o Brasil passou a experimentar em grande escala o que já vinha acontecendo em outros países – que também foram acelerados, mas em menor grau, pela pandemia.
Mesmo com o déficit de talentos, o mercado tem conseguido aumentar o nível de empregabilidade?
Sergio Paulo Gallindo – Sim. Em 2020 foram contratados 43 mil profissionais de tecnologia e em 2021 foram 154 mil. Essa escalada, apesar da queda de empregabilidade que teve no início da pandemia, ocorreu com velocidade muito rápida.
Com a maior digitalização da sociedade e o crescimento de tecnologias como finanças descentralizadas, blockchain, nuvem, inteligência artificial, IoT, etc., quais perfis de vagas têm se destacado no setor?
Mariana Rolim – O estudo da Brasscom fez uma separação dos maiores geradores de empregos por tecnologias maduras, emergentes e de nicho. Entre as tecnologias maduras estão os profissionais de big data, cloud e mobile, concentrando 60% da demanda de mão de obra especializada para os próximos cinco anos. Ocorre que, mesmo identificando essa demanda, as empresas não conseguem gerar, em quantidade necessária, a formação desses profissionais e por isso elas têm trabalhando na requalificação do seu quadro de trabalhadores para ocupar as posições. Em contrapartida, nós, da Brasscom, temos defendido a formação de desenvolvedores web, que são profissionais de estágio mais inicial, mas que, como comentado, representam uma grande faixa da lacuna que temos no mercado.
Até que ponto o modo de recrutamento, que costuma considerar características que são mais comuns em determinados grupos da sociedade, está limitando as possibilidades de contratações nas vagas de tecnologia?
Sergio Paulo Gallindo – Não creditamos essa questão do déficit de talentos às empresas, e sim à educação. Fizemos um estudo sobre educação e nos deparamos com situações muito graves em 2019. O primeiro ponto foi que há baixo interesse dos alunos que terminam o Ensino Médio regular por tecnologia. Na época, tínhamos dois candidatos disputando uma vaga e isso já mostrava interesse menor em relação a outros cursos de exatas, como a engenharia, onde a disputa era de três pessoas por vaga. Se compararmos com outros setores, como a medicina, a diferença é ainda mais gritante.
Outro ponto que identificamos foi uma certa obsolescência curricular, o que eleva a evasão dos alunos, mesmo nas faculdades. Nesse caso, os cursos mais modernos, como o de engenharia de softwares, têm evasão menor do que os mais tradicionais, como análise de sistemas.
O terceiro ponto entendido foi a insuficiência socioeconômica, pois a evasão muitas vezes ocorre por conta da necessidade, da pressão, que os jovens de classes socialmente desfavorecidas sofrem para contribuir com o orçamento familiar. Com esse cenário, entendemos porque os fatores socioeconômicos influenciam absolutamente na evasão, expondo de maneira clara o porquê não conseguimos formar profissionais de TIC em quantidade suficiente.
Então há relação socioeconômica com a falta de profissionais no setor…
Sergio Paulo Gallindo – Tudo isso que expus acima leva a uma dificuldade de formação de pessoas, inclusive o próprio Ensino Médio regular, onde matemática e ciência, de modo geral, não são matérias valorizadas como deveriam ser. Aí, quando há debilidade social, a evasão fica absolutamente desproporcional dados os fatores socioeconômicos.
O que você define por fatores socioeconômicos?
Sergio Paulo Gallindo – A diversidade é um dos principais. O desinteresse pela tecnologia é assimétrico quando se relaciona fatores de diversidade e isso se reflete no setor. Se pegarmos o contingente de pessoas empregadas atualmente, perceberemos que mais de 70% das áreas técnicas das empresas de tecnologia são preenchidas por homens brancos. Então, nos perguntamos – e ainda não temos um estudo conclusivo – sobre o que chamamos de “interdito social”. Isso diz respeito ao fato de o menino preto ou a menina preta – e mesmo a menina branca – entrarem no Ensino Médio regular e, por alguma razão, entenderem que tecnologia não é para eles.
Isso é bem complexo, não?
Sergio Paulo Gallindo – Muito, mas precisamos enfrentar, e rápido, essa questão da diversidade. E dentro das diversidades, a mais difícil e necessária de lidar, dados os números sociais, é a racial. Precisamos fazer com que as pessoas de todas as etnias e recortes sociais saiam da escola achando que tecnologia é sim para elas.
Vocês têm outras informações que possam subsidiar o mercado nesse sentido?
Sergio Paulo Gallindo – Temos alguns. Os estudos do Ministério da Educação – que faz a gestão das olimpíadas de matemática – comprovam, por exemplo, que não há questões relevantes de aptidão entre meninos, meninas, brancos, pretos ou qualquer outro grupo social. Ou seja: está mais do que comprovado que, nas faixas etárias menores, o grau de aptidão é equitativo. Isso só nos convence definitivamente, portanto, que o que deve ocorrer é algum processo de bullying capaz de afastar contingentes fora dos meninos brancos das áreas de tecnologia.
Em termos práticos, o que já é possível ser feito contra isso?
Mariana Rolim – Muitas coisas e uma delas nós estamos conduzindo, que é o Programa de Aceleração da Capacitação em TIC, que chamamos de EuTec. Devido à escassez de mão de obra que pesquisamos, conforme detalhado nesta entrevista, identificamos uma série de insights e um deles mostra que, quanto mais elevada a carga da capacitação, maior o volume de evasão.
Com base nisso fomos provocados a propor algo e criamos o programa de capacitação, focado em desenvolvedor web formado sob uma grade curricular de 264 horas, incluindo matérias técnicas e socioemocionais, já que esta última é uma das questões mais importantes identificadas para a continuidade dos estudantes desse setor.
Qual é o público e em que fase está o programa?
Mariana Rolim – O público alvo tem de 15 a 30 anos. Ou seja, temos de jovens a profissionais em transição de carreira. Fizemos uma primeira edição (piloto) no ano passado e ela foi custeada pela própria Brasscom. Mas o modelo é que a entidade seja somente gestora operacional e financeira, de modo que selecionamos instituições de ensino como parceiras de capacitação, como ONGs, ICTs e EduTechs, e estamos buscando recursos de fundos públicos e privados para conseguir massificar a iniciativa.
No programa piloto tivemos 100 alunos, selecionados por quatro de nossos parceiros capacitadores. Um deles foi a Fundação Zumbi dos Palmares, focada nos negros. Outra foi o Mackenzie e as duas restantes foram organizações sem fins lucrativos, o Instituto da Oportunidade Social e a Generation Brazil, que teve turma dedicada só a mulheres.
Qual foi o resultado do programa piloto?
Mariana Rolim – Foi muito bom, com taxa de evasão de 17%, o que é bem abaixo da média das graduações em tecnologia (32%). É importante explicar que conseguimos esses resultados porque concedemos bolsa de estudo visando apoio alimentação, transporte e internet, de modo que os alunos pudessem se manter durante o curso. Também houve um reconhecimento financeiro pela conclusão do curso.